Ogum
Ogum não é conhecido como o herói civilizatório à toa. Ele tem a missão de desbravar aquilo que ainda não foi explorado e, em boa parte das vezes, com pouca ou nenhuma referência externa que lhe sirva de base. A sua jornada consiste em descobrir os meios e caminhos para então apontar aos demais. Em forjar as ferramentas das batalhas baseado em seus próprios elementos e experiências, para então dar uma contribuição à Humanidade.
Para tanto, ele precisa ser a revolução em si e de si mesmo: este é o caminho para cumprimento do seu propósito.
Em sua jornada, muitas vezes serão disponibilizados a ele a fé de Oxalá, a esperteza de Exu, a magia e o amor de Oxum, o ímpeto de Iansã, o equilíbrio de Xangô, a inteligência de Oxóssi, a sabedoria de Nanã, o poder conectivo de Iemanjá e a força da transformação de Omolú.
É, portanto, o Orixá que simboliza o cumprimento do Divino Propósito e seus atributos.
Em outros momentos, todos esses atributos divinos serão retirados e ele se verá só, forçado a acessar todos esses talentos e virtudes divinos a partir do seu ponto de essência; só lhe resta o Propósito como guia, pois Ogum é o Senhor do Propósito.
Rezam os Itans, ou mitos Iorubás, que Ogum foi um destemido e bravo guerreiro. Temido e respeitado, sua bravura e seus feitos foram merecedores de culto e de inúmeros registros. Não houve conquista que Ogum não tenha realizado, sendo uma de suas marcas principais a inquietude: uma vez alcançada uma vitória, ou seguro dela, Ogum partia para abrir novos caminhos.
O Arquétipo de Ogum evoca a eterna necessidade de sonhar e de realizar, de manifestar, de buscar, sendo o próprio Herói humano e divinizado. Assim como a maioria das divindades africanas, Ogum não “nasceu” Orixá; tornou-se, por seus próprios méritos e esforços, sendo o símbolo do ser humano que, em processo de Apoteose, dorme como um homem e acorda como um Deus.
Em uma dessas lendas, vemos Ogum em seu aspecto (ou qualidade) “Onire”, um guerreiro cortador de cabeças. O melhor guerreiro de todos os tempos era implacável e não via à sua frente nada que não fosse sua sede por conquistas sucessivas.
Conquistou, dessa maneira, diversos reinos, dentre eles o Reino de Irê. Mas Ogum nunca estava satisfeito com suas próprias vitórias, razão pela qual colocou seu filho como regente de Irê e partiu para outras intermináveis batalhas.
Anos depois, Ogum resolveu retornar a Irê. Ao chegar, o reino estava silencioso em razão de uma cerimônia em que todos deveriam guardar absoluto silêncio. Ogum, contudo, não tinha conhecimento da cerimônia.
Cansado, com fome e com sede, Ogum não conseguia operar em nada que não fosse a satisfação de suas próprias necessidades. Assim ele estava habituado a agir, desde sempre, como todos aqueles que operam na inconsciência.
Buscou vinho de palma para saciar sua sede mas as jarras estavam vazias. Enfurecido com o silêncio, que lhe pareceu desprezo para com o grande guerreiro que ele era e sentido-se atacado em suas necessidades, Ogum foi possuído pela cólera. Destruiu os jarros e saiu quebrando tudo à sua frente. Sob sua espada, várias vidas pereceram naquele dia.
Cansado e drenado energeticamente por seu próprio surto, Ogum parou. Algum tempo depois chega seu filho, incumbido da regência de Irê, acompanhado de outras pessoas que vinham prestigiar o guerreiro dos guerreiros. Havia terminado a cerimônia do silêncio e assim que souberam da chegada de Ogum, correram para honrá-lo e agradá-lo com seus pratos prediletos e bebidas favoritas, inclusive o vinho de palma.
Ogum, então, acalmou-se e arrependeu-se de seus atos irrefletidos. Entendeu que era o momento de ele também silenciar e repousar. Baixou sua espada, fincou na terra e desapareceu sob o solo da Grande Mãe. O Itan diz que, nesse momento, Ogum tornou-se Orixá. Compreendemos, entretanto, que Ogum entendeu que era o momento de parar com as guerras, meras fugas de si próprio, para iniciar sua verdadeira Jornada do Herói.
Certos processos desencadeiam “crises de consciência”. É o momento em que o ser começa a sair do domínio inconsciente e percebe, por um lampejo, que pode se auto governar e determinar, sem ser arrastado pelas marés de suas paixões. É o momento em que vislumbra, mesmo que em frações de segundos, que pode despertar conscientemente seus aspectos divinos e deles se apropriar.
O processo de divinização, contudo, não é operado por milagre. Na sua própria Jornada Xamânica do Herói, Ogum é obrigado a descer ao submundo (o reino inconsciente) e guerrear contra seus próprios Dragões, símbolos de suas sombras e imperfeições (razão pela qual ele é sincretizado com São Jorge). A ira, a intempestuosidade, a violência, o temperamento forte e a ansiedade tormentosa que retiram a capacidade de justo julgamento não lhe são favoráveis em um primeiro momento.
Para um Guerreiro habilidoso, é muito fácil passar os inimigos externos no fio da espada. Mas o que se espera de um Herói quando é obrigado a enfrentar seu pior inimigo, materializado com seu próprio rosto, com seu próprio coração e com suas próprias imperfeições?
Não resta a Ogum outra alternativa a não ser converter toda sua ira em fogo. O temperamento forte em determinação. A violência em amor pela justiça. A ansiedade em agilidade.
Nesse processo, Ogum começa a reunir os metais pesados, em especial o chumbo das imperfeições que mantém o Ego aferrado e, a partir daí, começa a forjar sua própria espada. Das próprias imperfeições, o Deus Guerreiro inicia a construção da sua mais poderosa arma, a única capaz de vencer a si mesmo. Incendeia suas impurezas, despertando dentro de si o Fogo representativo do Espírito Eterno e inicia seu labor sagrado.
O chumbo trabalhado no fogo vai alquimicamente se transformando em ouro e sua espada já não se alimenta mais de sangue dos inimigos tombados, mas sim da luz de sua transformação consciente, tornando-se em ouro, o metal que ilumina, que simboliza a consciência e a Apoteose.
Divinizado e transformado em Orixá, Ogum se torna um patrono dos guerreiros que trabalham por uma causa alquímica maior: a iluminação do Eu. O Guerreiro focado, inteligente, determinado, destemido; que acolhe suas próprias fragilidades e medos e deles extrai força e coragem.
Ogum é aquele que empunha a espada para defender, que ensina a Arte; que ancora nos Buscadores quando esses iniciam suas Jornadas, para que esses também se tornem Ogum.
Ogum é aquele que abre os caminhos com sua espada para que cada ser do Universo tenha a oportunidade de trilhar sua própria Jornada do Herói e tornar-se Senhor de seu próprio mito.
E é por essas razões que, em Umbanda, Ogum sempre será o General Vencedor de Demandas; venceu as suas próprias adversidades e foi nessa batalhas que sua espada se tornou a destruidora do Véu de Maya.
A batalha de Ogum começou em seu próprio interior e foi no interior do seu próprio Universo que Ele venceu.
Patakori Ogum!
Texto original de Leo Estelrich para Aldeia Estrela Azul do Oriente
Reprodução e compartilhamento permitidos desde que creditada a fonte original.