Xangô
O famoso Senhor da Justiça costuma ter seus atributos muito reduzidos ao seu aspecto “Justiça”. Isso, por si só, já é um reflexo da limitada compreensão humana sobre a Justiça.
Xangô é uma Força Cósmica, o Orixá Guardião da Lei Natural, e podemos utilizar a ciência da Física para compreendê-lo melhor: Xangô é uma força harmonizadora, equilibradora, que mantém a coesão do Universo; sustenta os astros e elementos cósmicos em harmonia e equilíbrio para que não colidam entre si nem se desintegrem; ele sustenta a estrutura da própria Criação para que ela se mantenha estável enquanto for necessário. E ele traz a mesma vibração de estabilidade e ancoramento para as nossas relações e criações enquanto seres humanos.
Portanto, por trás da Justiça de Xangô existem outros atributos que ele manifesta mas que poucos se interessam: segurança, equilíbrio, estabilidade, harmonia, ancoragem, estrutura, solidez. A maior parte das pessoas se ocupa apenas do aspecto “justiceiro” de Xangô porque a maior parte se deleita (e se identifica) com o vício do vitimismo.
Assim como os elementos naturais a ele associados (rochas, pedreiras e minérios), Xangô estrutura os nossos valores, moldando uma base sólida para que possamos manifestar nesta dimensão os atributos e virtudes dos nossos Eus Superiores, bem como nossas missões de alma.
Ele carrega a segurança interior que nasce do alinhamento ao Propósito: Propósito de realizar o sonho da Fonte Criadora, da qual nascemos e da qual somos parte.
Este Orixá ajuda a ancorar e a materializar nas camadas da matéria tudo aquilo que é criado nos campos sutis do Universo interior e exterior de cada ser. Uma vez que vibremos de acordo com o Propósito e a Verdade, sentir e manifestar a segurança (oposta ao holograma egóico do medo) em nossas vidas será uma consequência natural.
É um dos Orixás mais invocados em vão: a maior parte das pessoas se sente injustiçada em inúmeros eventos de suas vidas pelos outros, pela vida, até por Deus, vivendo hologramas que apenas mascaram um padrão vitimista e de ausência de auto-responsabilidade.
E é nesse ponto que Xangô costuma ser invocado pelas vozes da Corrupção. Porém, Xangô não tolera a Corrupção e, frequentemente, libera o retorno kármico para quem fez mau uso da sua invocação.
A Verdade é que não se invoca Xangô para fazer “Justiça” quando nos sentimos injustiçados. A Justiça Divina, ao contrário da humana, age por si mesma. Esse tipo de invocação já é a pura Corrupção.
A Xangô pedimos apenas que nos livre das injustiças (e não que faça Justiça), principalmente das nossas injustiças interiores que semeiam discórdia e atraem toda sorte de injustiças e caos para as nossas vidas.
Em Umbanda, Xangô é o Rei. Mas um fato curioso é que todos os Orixás e Iabás são considerados, em algum momento, Reis e Rainhas. Esta ideia de “realeza” simboliza o domínio de cada Orixá dentro de seus respectivos Tronos e atributos.
Xangô é um dos Orixás mais exaltados em sua “realeza” e existe uma razão para ele ser o principal portador deste símbolo.
Como qualquer Rei, em uma interpretação espiritual, Xangô é a representação de um ser que alcançou maestria sobre si mesmo. Algo bem longe do imaginário terreno sobre o que ser Rei significa.
E, como qualquer Rei das mitologias divinas, Xangô fracassou e errou bastante, até conseguir compreender sua própria essência e Propósito.
A delicadeza destes “fracassos” simbólicos, no que se refere a Xangô, reside justamente no fato dele ser o Rei da Justiça. Tem a Justiça o direito de fracassar?
O que sabemos é que a Justiça Humana fracassa muitas vezes, se transformando constantemente. E, quando falamos de Orixás, devemos lembrar que se tratam de aspectos de Deus manifestados no Ser Humano e que indicam um caminho de divinização para o Ser Humano. Por isso as lendas dos Orixás falam de suas próprias jornadas de superação.
Xangô carrega a complexa ancoragem do Trono da Justiça. Ao longo das eras, os seres em geral, sejam eles negativos ou positivos (e especialmente os corrompidos), de inúmeras dimensões e momentos históricos e sociais, se julgaram portadores da balança e da espada da Justiça.
O ato de julgar está fortemente impregnado no ego humano.
A Justiça, em dimensões inferiores, representa apenas uma construção momentânea e passageira; mas a própria intuição de uma Justiça Natural aponta para a existência de uma Justiça comum a todos os seres, oriunda de Algo Maior; uma Justiça Divina, não transitória, diferente da justiça de conveniência e oportunista típica dos seres humanos.
E, embora todos a pressintam, o grau de Corrupção sobre a interpretação dessa Justiça Divina é, ainda, extremo.
Pois Xangô é a parcela de Deus que, manifestada de forma séria nos Orís dos seres humanos, resgata a comunhão com a Justiça Divina e a harmonia do ser dentro da Teia da vida.
Xangô nao atende a interesses pessoais. Grupais. Transitórios. Efêmeros. Perecíveis.
Xangô é Xangô, e sempre será. Xangô é a harmonia, é o equilíbrio entre as demais Potências do Cosmos. Xangô é a Justiça Distributiva, que entrega recursos onde falta, nos lembrando sempre da necessidade de desenvolvermos um amoroso olhar social, com igualdade de oportunidades para todos.
Mas Xangô é também a Justiça Retributiva, que cobra uma postura consciente sobre o que fazemos com cada oportunidade que recebemos do Universo; é a própria Lei do Kharma, mas não da forma corrompida como chegou no Ocidente e vem sendo perpetuada por muitas religiões, mas como Lei da Causa e Efeito.
Esta Lei, em sua pureza, determina que as colheitas que recebemos em nossas vidas são determinadas pela expressão verdadeira, amorosa, consciente e conjunta dos nossos sentimentos, pensamentos e atos, pautados pela nossa menor ou maior capacidade de procedermos de acordo com o BEM individual e coletivo.
Em resumo: não adianta a pessoa “agir” bem e enquanto sente, pensa e vibra no mal. Não adianta também “pensar” no bem mas agir no mal. Não adianta “sentir o bem” e não agir em conformidade.
Xangô não avalia nada disso; Xangô avalia essência e só. Se o sentir, o pensar e o agir refletem a boa essência, estamos sendo justos. Se refletem uma máscara protocolar, longe da essência, não há justiça nenhuma ali, apenas hipocrisia.
Xangô SEMPRE exige reparação aos conflitos e desarmonias que geramos e/ou dos quais tomamos parte; mas Xangô também garante os nossos direitos, ou seja, o livre arbítrio, em decidirmos entre: 1. Continuar no erro; 2. Corrigir os erros pela dor; e 3. Corrigir os distúrbios causados pela via do Amor.
Não é à toa que, nas lendas africanas, a esposa preferida de Xangô era Oxum; O Amor é sempre a escolha ideal da criação, harmonização e equilíbrio do Universo.
A misericórdia, o perdão e a compaixão precisam estar sempre presentes na harmonia e nas decisões justas. Pois Justiça sem amor não se chama Justiça, se chama vingança. O Amor dá Propósito à Justiça.
Isso, contudo, não quer dizer compactuar indefinidamente com atos maus, ruins ou arbitrários. Significa apenas que as decisões sábias deverão ser tomadas sempre com Amor, mesmo as mais duras, sob pena dessas decisões não serem capazes de restaurar harmonia e nem de corrigir e proporcionar evolução aos seres faltosos.
Isto traz um dos maiores mistérios e paradoxos de Xangô: ao mesmo tempo em que não existe a verdadeira Justiça Divina de Xangô sem Amor e misericórdia, esse mesmo Xangô jamais compactua com aqueles que apelam ao “amor” e à “compaixão” como pretextos para continuarem perpetuando o mal e a desarmonia de forma robótica, consciente ou inconscientemente, ou seja, com quem corrompe os atributos divinos de Xangô tentando levar vantagem para perpetuar o “status quo” dos velhos hábitos e sentimentos sob nova (e falsa) roupagem, alegando que o Universo deverá ser sempre leniente… Como se leniência eterna fosse alguma forma de expressão de… Amor.
Por mais que queiramos enganar o Universo com falácias, a Fonte Criadora será sempre a Fonte de Inteligência Suprema, porque sonda os corações através de uma Inteligência Emocional que é incorruptível.
Acordos firmados perante a Justiça Divina, lembremos, sempre serão justos, pois foram firmados perante a Justiça Divina; e a Justiça Divina, embora amorosa, continua sendo cega. Ela sonda corações e se comportará, SEMPRE, de acordo com os sentimentos e de acordo com a a verdade (e a mentira) de cada ser.
É comum, especialmente no meio espiritualista, as pessoas respaldarem muitas de suas más ações em estarem ouvindo “a voz do próprio coração”.
E é fato que confundem a voz do ego e da sombra com a voz do coração. Xangô, porém, está muito além das mentiras que o ser humano é capaz de contar para si mesmo.
Assim como o Amor, a noção de Justiça é uma das mais corrompidas da humanidade. Neste mundo, cada ser tem a sua própria definição de Justiça. Sair da caverna é fundamental, pois Xangô observa não apenas todos os ângulos das verdades individuais como também julga a vibração de cada molécula em cada ser para tomar uma decisão. Não existe um átomo sequer que passe despercebido quando Xangô, o Trono da Justiça Divina, resolve avaliar e tomar uma decisão.
E, por ser cega, a Justiça Divina de Xangô é absolutamente imune às máscaras, falsidades, hipocrisias e palavras vazias, mesmo quando fantasiadas de verdade. Somos divinamente julgados, portanto, de acordo com o desenvolvimento da verdadeira amorosidade e com os atos correspondentes, capazes de comprovar as disposições honestas dos nossos corações.
Por esses motivos, Xangô é tido como um dos primeiros Orixás que abandonam um(a) filho(a) quando este se corrompe. Isto é um símbolo de que a (in)justiça ali se instalou e de que seu raio está sendo corrompido. E, sem sua estrutura harmonizadora de Xangô, é praticamente impossível que demais raios (ou seja, as Virtudes dos demais Orixás) sejam respeitados e verdadeiramente vividos pela criatura que chegar a essa situação.
Xangô é o primeiro a se afastar de um Orí corrompido porque não existe ato mais contrário à Justiça Divina do que a Corrupção e a falsificação, que gera todo tipo de dor e desordem individual e coletiva.
Por fim, esse Orixá exige uma reflexão sobre o maniqueísmo que tem imperado na Terra: quem está aprisionado na falsa e ilusória luta entre o bem e o mal, construíndo ídolos e totens que incorporem o bem e o mal, não entendeu absolutamente nada sobre Xangô (e nem sobre os demais Orixás). Eles são Tronos neutros e seus aspectos podem ser ser manifestados tanto para o chamado bem quanto para chamado o mal.
Ocorre que a Justiça deve ser amorosa porém racional. Xangô não está presente em extremos e extremismos. Xangô permeia e traz coesão e coerência a todos os Orixás e suas respectivas virtudes.
Se alguém está mergulhado no maniqueísmo, que é a demonização do outro sem
auto-responsabilização e sem conscientização pelo próprio sentir, pensar e agir, sem assumir a responsabilidade pela própria transformação e pelo seu papel na cocriação de cada segundo que vivencia, esse alguém não está vibrando em Xangô e, consequentemente, perde a capacidade de atrair e experimentar na essência todos os demais Orixás.
Uma vez compreendido tudo isto, invoque o Rei Xangô, sempre. Mas não mais para clamar pela vingança pela “injustiça” à qual se sente acometido, mas para zelar e proteger contra as injustiças e para corrigir os pontos interiores em você que geram a repetição de hologramas de experiências injustas.
Xangô trata cada um no mesmo peso e na mesma medida em que cada coração vibra, na intimidade de seus corações e mundos interiores. Simples assim.
Portanto, se tomar consciência e perceber que seu mundo interior está em desequilíbrio e que seus conceitos de Justiça podem estar falhos, alegre-se! Tomar consciência de si é uma das metas do Despertamento. Isto é sinal de que você é um ser divino trilhando o caminho da evolução.
Mas nem pense em ficar estagnado e auto-complacente, ou cair na falsa “auto-justificação”.
Os resultados para quem toma consciência de um desequilíbrio e opta por ficar se auto justificando não são dos melhores: Xangô não os tolera.
Simplesmente peça a Xangô para te ensinar sobre os caminhos da verdadeira Justiça, alinhado à amorosidade de Oxum, e continue sua jornada, se libertando das injustiças interiores e, consequentemente, das exteriores. E se comporte de acordo com a sua decisão, e ponto.
A Justiça Divina é cega, mas não é tola; ela é cega somente para as máscaras mundanas, demonstrando que as ilusões e corrupções não são capazes de atingi-la; mas tem os olhos da Verdade muito bem abertos, através do coração e do sentir verdadeiros. Afinal, a Deus nenhum coração engana, e Deus jamais é injusto.
Xangô, o Senhor do Trovão, é a própria Justiça Divina; se apresenta nas oportunidades em que menos se espera e de forma espantosa, surpreendente, inesperada, silenciosa e ao mesmo tempo ruidosa, para a alegria dos Eus e desespero dos Egos.
Kaô, Kabecile Xangô!
Texto original de Leo Estelrich para Aldeia Estrela Azul do Oriente
Reprodução e compartilhamento permitidos desde que creditada a fonte original.